segunda-feira, 7 de maio de 2012

Conseguisse eu escrever assim...

"Os portugueses têm o hábito triste e mesquinho de diminuírem a vida do outro. Se nuns isso é sintoma de arrogância, noutros é a inveja que leva ao menosprezo. Mas para quase todos (e tenho-o visto à minha volta todos os dias em todas as horas, feitios e estatutos), a vida do outro é sempre redondinha, simples, a bater certo com as necessidades, cheia de confortos e conveniências, com poucas e brandas dores e ainda com vantagens extra caídas do céu, entregues de bandeja. A vida do outro é, portanto, fácil. Pedro, por exemplo, acha que a vida de António é fácil, porque António tem um contrato de trabalho e um salário ao fim do mês e salário, como se sabe, é sinónimo de independência. Mas António acha a vida de Pedro fácil porque Pedro é estagiário, ninguém o pressiona e pode sair às seis horas em ponto e também acha fácil a vida de Marta, que é contabilista e a única coisa que tem de fazer é organizar papéis e dedilhar na máquina calculadora. Marta acha fácil a vida de António, parece ser divertido passar o dia a fazer desenhos e a escolher cores, afina aqui, retoca ali, e depois o orgulho de ver tudo exposto na rua e nas revistas, assim como acha fácil a vida de Augusta, que limpa e varre os escritórios de fio a pavio enquanto canta canções de amor, concentração zero, responsabilidade nula. Augusta acha fácil a vida de Marta, que trabalha sem levantar o rabo da cadeira e não chega ao fim do dia com o corpo moído e doente, assim como acha fácil a vida de José que, com o cargo que tem na direção, ganha que chegue para passar férias decentes em paraísos orientais, como nos filmes. José acha fácil a vida de Augusta, que consegue tirar os dias de férias a que tem direito e esparramar-se ao sol, pensando em nada, no relvado da praça ou na varanda de casa, e também acha fácil a vida de Carlos, o dono da empresa, que beneficia do luxo enquanto os outros dão o corpo ao manifesto para que o barco se aguente. Mas Carlos acha fácil a vida de José, que só não desliga ao fim de semana porque não quer nem tem às costas a vida de vinte famílias, assim como acha fácil a vida de Rogério que goza, no espírito e na carne, uma vida de solteiro, livre, independente, sem horas marcadas nem mensagens para responder. Rogério acha fácil a vida de Carlos que, quando regressa a casa, tem juras de amor, mimos e afagos, uma mesa posta e uma cama morna e acha ainda fácil a vida de Bela, a última mulher com quem dormiu por acaso, que se conseguir meia dúzia de sessões fotográficas ganha que chegue para três meses. Bela acha fácil a vida de Rogério, que tem trabalho certo e previsível e em quem, pelo menos, veem mais do que um corpo bonito e também acha fácil a vida de Mariana, que não tem um filho para sustentar e para lhe dar cabo da paciência ao fim do dia. Mariana acha fácil a vida de Bela, que não tem de se injetar com hormonas nem fazer sexo em dias certos para despistar a infertilidade mas também acha fácil a vida do irmão Miguel, que num golpe de sorte e talento se tornou um escritor mediático. Miguel acha fácil a vida de Mariana, porque uma dona de casa não faz ideia do que é a crítica e o quanto podem pesar a pressão e o reconhecimento do público e também acha fácil a vida do filho Francisco, a quem a adolescência não exige mais do que tempo para ir às aulas e outro tanto para matar em noitadas e miúdas. Francisco acha fácil a vida do pai Miguel, que não tem já de esforçar para mostrar o que vale e, de resto, encontrou o seu lugar no mundo e também acha fácil a vida da irmã Laura, cujos grandes dilemas diários giram em torno da roupa das bonecas e não tem os pais nem o universo inteiro contra ela. Laura acha fácil a vida do irmão Francisco, que já tem a chave de casa, entra e sai quando quer e vai de férias com os amigos e acha mesmo muito fácil a vida do primo recém-nascido João, que repousa tranquilo no peito materno e não faz ideia que cantarolar a tabuada pode chegar a ser o inferno na terra. Mas João, que acaba de rasgar as entranhas da mãe, que com ela trabalhou violentamente durante oito horas seguidas para vir ao mundo, que num repente lhe foi arrancado batendo de frente, indefeso, contra o frio, a luz e o barulho, que foi remexido, vasculhado, aspirado, medido e revirado por três pares de mãos, que na brevidade dos sessenta minutos seguintes teve de aprender a respirar, a chorar, a cheirar, a comer e a digerir, João talvez saiba que nada, nunca nada na vida será fácil para ninguém. Infelizmente, João esquecerá tudo isto porque a memória tem misteriosos caprichos. E um dia também achará fácil a vida de António, que acha fácil a vida de Marta. (...)"
De um dos meus blogues preferidos:
http://maepreocupada.blogspot.com/?m=1

1 comentário:

Teresa disse...

Novela da TVI??? :D
Às vezes dizemos "os portugueses" como se não o fossemos também e como se nunca, em nenhum momento tivessemos também atitudes ou pensamentos que "os portugueses" têm... Não conheço nenhum "português" que não os tenha tido... Ou porque a vida é muito dificil, ou é porque é muito fácil, ou porque "esse português" devia fazer assim ou porque devia fazer assado... Há sempre qualquer coisa que se diz da vida dos outros "portugueses"... Talvez arrisque dizer que é mal não dos "portugueses" mas dos "humanos" no geral... Aborrece-me tanto ou mais do que esta atitude do "olhar para o lado", a atitude de se achar que se é tão diferente dos outros "portugueses". É certo que alguns são mais exuberantes a fazê-lo, mas felizmente não somos (humanos) assim tão diferentes uns dos outros. Acreditar com tanta força que somos tão diferentes talvez separe ainda mais "os portugueses" e os "humanos" do que a diferença real entre eles... Às vezes é bom pensar e reflectir mais em nós próprios e nas nossas atitudes do que nas atitudes dos outros (portugueses ou humanos)...